E é nesses momentos que a vida, na sua infinita paciência e sabedoria...
Nuno Michaels
Ser espiritual é ser um: um conosco, um com toda a criação. Mas antes de nos perdermos no todo, temos de nos encontrar como indivíduos.
O que significa 'indivíduo'? Significa ser uno e indivisível, ter a audácia e a coragem e a consciência necessárias para se ser quem se é - ou quem se nasceu para ser. Por isso o processo, psicológico e espiritual, a que se chama 'individuação' é uma jornada em direção à unidade, à totalidade, à integridade.
Como? Reunindo o que em nós está, por natureza e condição, dividido: luz e sombra, consciente e inconsciente, corpo e espírito, matéria e energia, ação e passividade, movimento e repouso, masculino e feminino, instinto de separar e instinto de unir.
Tornarmo-nos indivíduos significa religar as partes de nós que estão divididas numa síntese criativa que é mais do que a soma das metades em conflito. E esse processo só se inicia quando reconhecemos que somos seres divididos, aprisionados entre dois princípios opostos que contêm em si próprios a promessa da sua reunião.
Só que no mundo prático, concreto, pragmático e racionalista em que vivemos ninguém nos ensina que podemos ser duais, conflitantes, contraditórios - e que essa é a nossa condição natural.
Ensinam-nos, sim, a sermos a metade do que temos cá dentro: lógicos, funcionais, performativos, eficientes, produtivos, racionais, fortes, idealmente ricos, seguros e poderosos. E pergunto eu: e a nossa outra metade, por que não admiti-la, como conectá-la, como a recuperar?
É porque existe essa falha, esse hiato, esse equívoco ontológico naquilo que nos ensinam a ser que inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo no nosso percurso de vida e por mais de uma vez, somos confrontados com a necessidade imperiosa de reencontrar a outra metade de nós - as partes que foram reprimidas, esquecidas, relegadas para o domínio do que não vivemos voluntariamente.
E é nesses momentos que a vida, na sua infinita paciência e sabedoria, nos convida a um reencontro com o 'outro' de nós próprios. E só porque não lhes reconhecemos imediatamente a oportunidade e o objetivo que encerram, vivemos esses momentos como crises. E procuramos ajuda numa terapia, num psicanalista, numa religião, num ensinamento espiritual.
E o poder dessa ajuda varia na forma mas não na essência: guiar-nos no processo de religar o que em nós estava separado. Esse é o gesto verdadeiramente religioso ou espiritual. Não é por acaso que a raiz etimológica de religião é 'religare', que significa 'voltar a unir'.
Unirmo-nos a nós mesmos e sermos um e mais amplos: essa é a verdadeira proposta de evolução espiritual.
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