"São notícias muito boas e esperamos que esta tendência continue nos próximos anos"
Nove conquistas mundiais para o clima e a natureza em 2023
No Brasil, STF confirmou os direitos dos povos indígenas às suas terras ancestrais em uma decisão histórica. Mas aprovação da tese do marco temporal no Congresso criou confusão jurídica,
Gastos recordes com energia limpa nos Estados Unidos. Um marco da energia verde no setor elétrico global. Aumento de ações judiciais contra poluidores. Um tratado sobre os oceanos que estava em elaboração há 40 anos.
No Brasil, a redução do ritmo de desmatamento da floresta amazônica e avanços importantes nos direitos de povos indígenas.
Algumas medidas notáveis foram tomadas nos últimos 12 meses para enfrentar a crise climática.
Mas em um ano tumultuado como 2023, é natural que a nossa atenção tenha se concentrado nos desastres ambientais que dominaram as manchetes.
Se somarmos a isso nosso "viés negativo", que afeta o tipo de informação que mais atrai nossa atenção, compreenderemos porque as conquistas positivas do último ano parecem tão discretas em comparação às más notícias.
Alguns avanços também não foram amplamente divulgados porque são conquistas de comunidades de base ou grupos indígenas cujas vozes são frequentemente deixadas à margem.
É por isso que reunimos aqui algumas das "vitórias silenciosas" de 2023 para o clima e a natureza, para garantir que estes avanços não escapem à nossa atenção.
Aqui estão nove acontecimentos positivos que merecem sua atenção, além de uma outra transformação mais marcante.
Pequenas ilhas são especialmente vulneráveis à subida do nível do mar, o que representa um enorme desafio para a adaptação delas às mudanças climáticas
1. Um grande impulso para as energias limpas
Nos Estados Unidos, a transição para a energia verde recebeu um enorme impulso com a Lei de Redução da Inflação, aprovada em 2022.
A lei inclui US$ 369 bilhões (mais de R$ 1,8 trilhão) para medidas destinadas a reduzir as emissões de gases ligados ao efeito estufa, apoiar a produção de energia limpa e incentivar a transição elétrica.
Trata-se do maior investimento climático da história dos EUA, embora o nome da lei não deixe isso nada claro, o que talvez a torne a definição de uma vitória climática "silenciosa".
"Não parece tratar da mudança climática, mas trata", diz David King, ex-enviado do Reino Unido para o clima que trabalhou em negociações com o norte-americano, John Kerry, incluindo o Acordo de Paris.
"Ainda hoje, a maioria do Senado e do Congresso americanos não vai apoiar ações diretas sobre as mudanças climáticas. É por isso, claro, que o presidente Joe Biden levantou esta ação climática no âmbito do seu projeto de lei de emergência para lidar com a inflação".
Desde a aprovação do pacote em agosto passado, o setor privado anunciou mais de US$ 110 bilhões em novos investimentos na produção de energia limpa, incluindo mais de US$ 70 bilhões para veículos elétricos, de acordo com o governo americano.
Uma análise realizada por uma equipe de pesquisadores em energia e sustentabilidade estima que, até 2035, a aceleração da energia verde decorrente da medida tem o potencial de reduzir as emissões de toda a economia dos EUA entre 43% e 48% em comparação com os níveis de 2005.
Se isso acontecer, os Estados Unidos devem se aproximar consideravelmente dos seus objetivos climáticos.
A lei também pode ajudar a financiar esforços crescentes das comunidades nativas americanas para gerar energia renovável em terras indígenas.
A energia proveniente de fontes renováveis, como eólica e solar, cresceu mais rapidamente do que a demanda global
2. Um ponto de inflexão nas emissões do setor elétrico
As emissões do setor elétrico atingiram seu pico em 2023.
Isso porque a energia proveniente de fontes renováveis, como eólica e solar, cresceu mais rapidamente do que a demanda global, o que significa que as emissões do setor deverão diminuir pela primeira vez daqui para a frente.
Segundo especialistas, este é um marco que não só é positivo no papel, mas representa um importante ponto de transformação positiva para as mudanças climáticas.
"Isso marca o ponto em que as emissões do setor elétrico param de aumentar", escreveram Małgorzata Wiatros-Motyka, analista sênior de eletricidade do instituto Ember, com sede em Londres, e seus colegas.
Como acontece com qualquer ponto de inflexão, é depois do pico que ocorre o verdadeiro impulso, como disse o especialista em mudanças climáticas Simon Sharpe à BBC.
“Quando isso acontecer, este será o primeiro grande setor emissor global a se voltar para a redução das emissões, em vez do crescimento”, disse Sharpe.
"Acredito que há uma boa probabilidade de que este seja um ponto de virada na nossa confiança política e social de que poderemos realmente controlar este problema."
Em uma atualização semestral de seus estudos, o instituto Ember concluiu que as emissões do setor elétrico haviam se estabilizado, assim, o panorama para as emissões energéticas ainda está por um fio.
3. Fabricantes de plástico processados por poluição
Estima-se que a cada ano sejam produzidas 460 milhões de toneladas de resíduos plásticos no mundo, dos quais cerca de 22% são despejados em aterros não controlados, queimados a céu aberto ou lançados em ambientes terrestres ou aquáticos.
Mas a reação contra os plásticos descartáveis está crescendo.
Em 2022, a Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente começou a negociar um Tratado Global sobre Plásticos para abordar a poluição global por plásticos, com o objetivo de entrar em vigor até o final de 2024.
No entanto, novas vias legais estão permitindo que pessoas ataquem o problema por conta própria e processem os fabricantes de plástico por danos.
Embora este seja um problema essencialmente de poluição, a indústria do plástico também contribui com 3,3% das emissões globais de gases do efeito estufa – comparáveis às emissões da aviação – e 6% da eletricidade global é gerada a partir do carvão usado para produzir plásticos.
4. Remoção de barragens para ajudar o salmão
Estão em andamento trabalhos para desmontar enormes barragens no rio Klamath, nos EUA
As barragens no rio Klamath, no Oregon e na Califórnia, reduziram bastante as populações de salmão.
Após décadas de campanha, a primeira barragem foi demolida em novembro de 2023, uma das três a serem removidas ao longo dos anos no maior projeto de remoção de barragens da história dos EUA.
Grupos indígenas da região estão eufóricos: os Yuroks e Karuks lutam por um rio de fluxo livre para restaurar e curar o ecossistema e fortalecer as suas ligações ancestrais com as águas, que consideram uma fonte de vida.
"Remover as barragens de Klamath é o maior passo que podemos dar para restaurar o ecossistema fluvial e aumentar o número de salmões", disse Barry McCovey, diretor do Departamento de Pesca de Yurok. "O projeto também tornará o fluxo de peixes mais resistente às mudanças climáticas."
O salmão Chinook é um alimento culturalmente sagrado para a etnia Yurok, que depende dele para seu sustento. Nos últimos anos, os Yurok cancelaram seus festivais anuais de salmão devido à escassez.
Agora que o rio voltou a fluir livremente, eles esperam que esta população se recupere.
Os membros da etnia têm recolhido meticulosamente sementes de plantas nativas da região para replantar nas encostas áridas que ficarão expostas após a remoção da barragem de Klamath, que será concluída no final de 2024.
5. Um tratado para proteger o alto mar
Após décadas de negociações, países finalmente chegaram a um acordo sobre o tratado para proteger os oceanos do mundo além das fronteiras nacionais.
Até agora, apenas 1% destas águas haviam sido protegidas.
O Tratado de Alto Mar proporciona embasamento jurídico para a criação de áreas marinhas protegidas, um passo crucial para cumprir o objetivo de proteger 30% dos oceanos do mundo até 2030.
"O navio chegou à costa", disse Rena Lee, presidente da Conferência Intergovernamental sobre Biodiversidade Marinha de Áreas Além da Jurisdição Nacional, na conclusão das negociações em março.
6. União Europeia promete respeitar florestas
A União Europeia está pondo um fim nas importações de matérias-primas e produtos ligados ao desmatamento, numa medida que ativistas consideram inovadora.
De acordo com uma nova regulamentação que entrou em vigor em junho de 2023, os importadores de matérias-primas como soja, carne bovina, óleo de palma, madeira, cacau, café e borracha "devem ser capazes de demonstrar que os produtos não provêm de áreas recentemente desmatadas nem contribuiu para a degradação das florestas", afirmou a Comissão Europeia em comunicado.
Isso também inclui produtos como chocolate e móveis feitos com essas matérias-primas.
De acordo com um relatório da ONG WWF publicado em 2021, a União Europeia foi o segundo maior importador de produtos ligados ao desmatamento depois da China, e o bloco foi responsável por 16% do desmatamento ligado ao comércio internacional.
"O Regulamento da UE sobre desmatamento é o primeiro do gênero e um passo pioneiro para a UE tentar reduzir a destruição que o nosso consumo está causando", afirma Sini Eräjää, gestora da campanha da Greenpeace para as florestas da UE.
A regulação obriga grandes empresas a demonstrarem que suas cadeias de abastecimento são limpas.
Eräjää diz que o Greenpeace irá pressionar para que o Regulamento seja expandido para proteger outras áreas naturais além das florestas, como savanas e zonas úmidas, e para abranger também mais produtos, como milho e aves.
Brasil reconheceu seis novas reservas indígenas, proibindo a mineração e restringindo a agricultura comercial nelas
7. Desmatamento na Amazônia desacelera
Outras notícias positivas sobre as florestas vieram do Brasil, onde o ritmo de desmatamento da floresta amazônica desacelerou, depois que o novo governo se comprometeu a parar completamente o desmatamento até 2030 e adotou medidas de monitoramento das florestas para detectar atividades criminosas como a extração ilegal de madeira.
Na Colômbia, o ritmo também diminuiu.
"São notícias muito boas e esperamos que esta tendência continue nos próximos anos", afirma Marielos Peña-Claros, professora de Ecologia Florestal e Gestão Florestal na Universidade de Wageningen (Holanda) e co-presidente do Painel Científico da Rede Amazônica.
Uma razão para esta tendência positiva é que os governos estão voltando a uma estratégia que conseguiu manter o desmatamento baixo entre 2004 e 2012.
Essa abordagem "inclui não apenas controle e multas, mas também alternativas de produção", afirma.
Peña-Claros também saudou iniciativas dos países amazônicos para colaborar regionalmente, destacando os esforços para rastrear, mapear e deter o desmatamento em conjunto por meio de projetos como o MapBiomas, que coleta e apresenta dados sobre mudanças no uso da terra.
8. Defesa dos direitos indígenas no Brasil
Em uma vitória para as comunidades indígenas e o meio ambiente, a Suprema Corte do Brasil confirmou os direitos dos povos indígenas às suas terras ancestrais em uma decisão histórica.
O povo Xokleng, de Santa Catarina, havia sido expulso de suas terras e agora o governo lhe devolveu seu território.
Acredita-se que o caso estabeleça um precedente importante para futuras reivindicações de grupos indígenas no Brasil.
Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconheceu seis novas reservas indígenas, proibindo a mineração e restringindo a agricultura comercial nelas.
Apesar da tese do marco temporal ter sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ainda assim, deputados e senadores a aprovaram no Congresso Nacional. A situação criou uma confusão jurídica que precisará ser novamente debelada à frente.
O acordo final da COP28, alcançado por quase 200 países, incluiu pela primeira vez o objetivo de abandonar os combustíveis fósseis
9. Recursos para países vulneráveis
As nações que sofrem com secas e inundações frequentes e que enfrentam a ameaça iminente da subida do nível do mar têm apelado por financiamento internacional para ajudá-las a lidar com os impactos das mudanças climáticas.
Os pedidos começaram há mais de três décadas. Mas os países ricos têm historicamente resistido a estes apelos por medo de serem responsabilizados pelos danos climáticos que causaram.
Em 2023, começamos a ver uma mudança na forma como os pedidos são ouvidos. Na COP28 de Dubai, líderes mundiais concordaram em lançar o tão esperado fundo para perdas e danos causados pelas alterações climáticas.
Este ano, a promessa de atribuir anualmente US$ 100 bilhões (R$ 489 bilhões) aos países afetados pelas mudanças climáticas também foi cumprida pela primeira vez.
E uma promessa
E não podemos deixar de fora a forte promessa de abandonar os combustíveis fósseis, incluída pela primeira vez no acordo final da COP28, assinado por quase 200 países.
Nações como EUA, Austrália e o bloco da União Europeia saudaram o acordo como histórico por prever a transição rumo ao abandono dos combustíveis fósseis.
Os pequenos Estados insulares, as nações vulneráveis e os países mais pobres afirmaram que a linguagem não era suficientemente forte ou urgente e criticaram a falta de detalhes sobre a forma como os países ricos poderiam prestar apoio na transição.
O presidente das negociações da COP28 em Dubai, Sultan al Jaber, disse considerar o acordo suficiente para manter de pé o objetivo ambicioso de limitar o aquecimento a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais até ao final do século.
Se ele está certo ou errado, dependerá de como as palavras vagas do acordo serão traduzidas em ação.
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Reportagem de India Bourke, Isabelle Gerretsen, Katherine Latham, Sophie Hardach, Martha Henriques e Lucy Sherriff.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0vyqv390n1o
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