“O futuro é agora, pode não haver amanhã”.
Lutar pelo futuro pós-vírus
Eliane Brum
Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, e não será, qual é então o mundo que queremos?
Lutar pela vida ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém, fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. O rompimento da normalidade para poucos, da anormalidade para a maioria, que o vírus provocou, pode ser a oportunidade para desenhar uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça racial e entre espécies. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à anormalidade que nos esmaga. Aquilo que muitos chamam de novo normal ―e nós entendemos que é um “novo anormal”.
Até baluartes da imprensa liberal, como The Economist e Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, anunciaram no início da pandemia que seria preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo. Já podemos perceber, porém, que as velha forças já se rearranjam para tentar manter tudo não só como estava, mas com ainda maior exploração dos mesmos de sempre ―nós.
Sabemos que, numa crise, as pessoas se agarram àquilo que conhecem. Mesmo que aquilo que conhecem seja muito ruim, elas encontram conforto em conhecer a própria desvalia do que se arriscar ao desconhecido, que pode trazer uma miséria com a qual não se tem intimidade. O sentimento de desamparo é muito difícil de sustentar. Assim, é bastante provável que todas as “boas” intenções ―pessoais, corporativas, governamentais desapareçam com a ameaça do vírus, caso a vacina seja encontrada, e as pessoas reassumam seus postos nas jaulas de cada dia. Até a próxima pandemia ou o próximo desafio da emergência climática em curso. Ou até pior: as pessoas podem aceitar mais perda de direitos e dar mais poderes a quem nos oprime na tentativa de se salvar do próximo vírus ou da próxima catástrofe. E elas virão se não houver uma mudança radical na forma de viver.
O vírus, porém revelou um segredo, como apontou o filósofo francês Bruno Latour, num artigo que “viralizou”. Com o vírus, descobrimos que aqueles que afirmavam ser impossível parar de produzir, reduzir o número de voos, aumentar os investimentos dos governos e mudar radicalmente os hábitos, apenas mentiam. O mundo mudou em semanas em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas práticas que surgiram deste período e pressionar, como nunca antes, por outro tipo de sociedade, tecida com outros fios.
É no sistema capitalista que o planeta, supostamente à disposição dos consumidores, foi consumido; que espécies inteiras foram destruídas e outras subjugadas para terem seus corpos consumidos em produção industrial. É assim que você nasce para, consumindo seu corpo e seu tempo, ser consumido e se consumir. E é assim que os humanos se tornaram, a partir da revolução industrial, que iniciou um processo cada vez mais veloz de emissão de CO2 pela queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo etc), uma força de destruição do planeta. Atenção, porém: não todos os humanos, mas a minoria dominante.
Pressionadas pelo colapso da natureza que provocaram e pela evidência de que haverá mais pandemias, as grandes corporações que controlam o mundo e aqueles que se beneficiam delas tentam agora reinventar o sistema de destruição, como já fizeram no passado, para continuar no controle ―e lucrando. E têm muitas chances de conseguir.
Nós queremos impedir que rearranjem o anormal. E queremos fazer isso pelo caminho mais radical, o da imaginação. Pelo resgate da possibilidade de voltar a imaginar outros mundos possíveis. Isolamento físico, sim. Isolamento social, jamais.
E por que “libertar” o futuro? Porque entendemos que o futuro ―assim como nós― foi sequestrado pelos déspotas eleitos que hoje governam parte do mundo.
Mas por que os déspotas eleitos oferecem um passado que nunca existiu? Aí está um outro segredo, que queremos revelar para o mundo. A resposta é que eles não têm futuro para oferecer. O futuro é a crise climática, que eles se esforçam para negar, mas está acontecendo. O futuro é hostil. Para conquistar o poder e para manter o poder eles precisam vender um passado que nunca existiu e negar veementemente o futuro. É muito importante compreender que eles só conquistam e só mantêm o poder negando o futuro, vendendo um passado que nunca existiu.
Déspotas eleitos e toda a corja de perversos e mentirosos vendem a volta ao que nunca houve. Um passado em que havia paz e que cada um aceitava passivamente o seu lugar – o que significa que os negros aceitavam passivamente o seu lugar subalterno, os indígenas aceitavam passivamente o seu lugar subalterno, as mulheres aceitavam passivamente o seu lugar subalterno, todos aceitavam passivamente que o gênero era binário ou então era desvio. Um passado em que cada coisa estava em seu lugar e cada um sabia o lugar de cada coisa e estava tudo pacificamente resolvido.
Ora, nós sabemos que não havia paz neste passado. Que ele era costurado com conflitos, com sujeições, com apagamentos e com extermínios. Déspotas eleitos limpam esse passado de seus conflitos e de suas mortes e o embalam para oferecer a uma população assustada com um mundo movediço, uma população assustada com as insurreições daqueles que sempre foram considerados sub-humanidades, como diz o pensador indígena Ailton Krenak, aqueles que sempre estiveram nas periferias da vida pública e da privada e passaram a disputar o centro.
Eles não são negacionistas da crise climática porque acreditam que ela não existe. Eles são negacionistas porque não podem oferecer futuro exatamente porque estão a serviços das corporações transnacionais e dos grupos locais que produzem a crise climática. Este é o ponto frágil dessa extrema direita assassina, em alguns casos fascista, que hoje governa o mundo: quando eles negam a crise climática, porque só podem negá-la, precisam também negar o futuro.
E aí está a fissura que a pandemia abriu. De repente, o mundo parou. Quando os povos indígenas, os cientistas e os adolescentes gritavam que era preciso reduzir a produção para salvar a nossa vida no planeta, que era preciso mudar o jeito de viver, governantes e grandes corporações diziam que era impossível. O que a pandemia mostrou? Que é possível, sim. E que dá para fazer isso rapidamente. Em poucas semanas, o impossível aconteceu.
É também por isso que Paulo Guedes, o braço perverso de Bolsonaro numa economia (que se vende como todo mas é reduzida ao financeiro), assim como essa meia dúzia de pessoas que representam (essa mistificação) chamada mercado, tentam recolocar rapidamente o discurso neoliberal, o da volta à normalidade, o discurso da produção e do crescimento, para mostrar que dá para mudar tudo ―mas só por um curto espaço de tempo. Depois, é preciso correr e recuperar a produção e os lucros perdidos. À custa, como cada um sabe bem, dos corpos dos outros ―os nossos corpos. O “sacrifício” é da maioria para a minoria manter seus privilégios. Ou alguém estava feliz e próspero antes da pandemia, alegremente apaziguado com seu tempo sequestrado pela prisão do modelo 24 (horas) por dia X 7 (dias) por semana?
Hoje, apenas 2.153 pessoas – às vezes a gente esquece que os bilionários são pessoas, têm nome e sobrenome ―concentram mais riqueza material do que 60% dos outros 7.790.000.000 de seres humanos que habitam o planeta. Veja a diferença no número de casas decimais. Eles representam uma fração tão insignificante no conjunto da população global que os números falham em torná-los visíveis como porcentagem. A desigualdade racial, social, de gênero e de espécie que provocam, porém, é brutalmente visível.
Nós, do movimento de libertação do futuro, queremos que o mundo não seja apenas para 0,00003% ―ou 1 bilionário para cada 3,7 milhões de pessoas.
Não podemos nos render à volta da normalidade que corrompe a natureza e condena bilhões à pobreza. Não devemos permitir que a Amazônia, cada vez mais perto do ponto de não retorno, siga sendo destruída. As ideias precisam circular. Imaginar o futuro já é mudar o presente.
Entendemos ainda que, libertando o futuro nós também deixamos de ser reféns. Enquanto o futuro estiver sequestrado, nós também estaremos subjugados, encarcerados num presente contínuo, em eterno looping, vivendo aos espasmos.
Nosso instrumento é a imaginação. É a arte que promove a imaginação e é sempre a primeira a ser atacada por governos e governantes autoritários, que precisam controlar corações e mentes para impor seu projeto de poder. Foi assim no nazismo. A imaginação é a arte do pensamento. E é com ela que vamos começar a resgatar o futuro. Imaginar não é ato passivo, ao contrário. Imaginar é agir ―imagin/ação.
Não podemos esquecer do segredo revelado pela pandemia: o de que é possível parar ―e, principalmente, o de que é possível mudar. E lembremos, como um mantra, todos os dias, das palavras de Ailton Krenak: “O futuro é agora, pode não haver amanhã”.
Lançamos algumas bases para a sociedade que queremos criar, a partir de princípios que são inegociáveis:
1) com racismo não há democracia, como apontou o manifesto antirracista da Coalizão Negra por Direitos;
2) com especismo (que é o racismo com outras espécies) não há democracia;
3) é imperativo eliminar a desigualdade racial, social, de gênero e entre espécies;
4) resgatar o futuro é responsabilidade coletiva de todas e de todos que estão vivos nesta época;
5) nos compreendemos como natureza e queremos um mundo para todos os humanos e não humanos que habitam o planeta;
6) a Amazônia, como conceito amplo, é o centro do mundo.
Lutaremos.
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Eliane Brum é colunista do El País e +1 do movimento #liberteofuturo.
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