Se não percebermos a força desta advertência histórica que ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver.
A humanidade sempre sofreu grandes dificuldades
Nélida Piñón
A humanidade sempre sofreu grandes dificuldades. Nunca houve uma época frutífera, só instantes de celebração, mas cada vez que a humanidade fracassa, seguimos em frente.
Agora se fala da globalização, mas os vikings já começaram esse processo; e o fizeram os gregos com Alexandre, os bucaneiros ingleses do Caribe e os extraordinários globalizadores portugueses. Sempre foi assim. Todos abriram espaços para a globalização.
O que acontece é que hoje vendemos nossa liberdade de indivíduos pátrios por objetos perecíveis, sem nenhum valor. Não tenho medo, enfim, do dano que possa ocorrer, porque o pior já está ocorrendo.
Se não percebermos a força desta advertência histórica que ameaça a civilização é porque não estamos preparados para sobreviver. É preciso que estejamos preparados para sair disto e tentar ver o que impede nossa sobrevivência. Por trás de tudo isto estamos vivendo uma explosão demográfica. A terra tem dificuldades para abraçar oito bilhões de pessoas. Ninguém quer ficar na África, ou na Europa, ninguém quer ficar onde está, sempre estamos procurando um lugar onde se possa assegurar a fortuna… Mais do que nos deslocando geograficamente, estamos nos deslocando em espírito, e nisto vejo insatisfação, necessidade, um infortúnio extraordinário. Como se não tivéssemos futuro, nos empenhamos em apagar os fatos do passado. O passado não se destrói, mas é preciso corrigir os desvarios do presente.
A humanidade nunca teve um código moral que servisse a todos! Os códigos que tivemos serviam a alguns, aos donos do código, aos que o escreveram e não aos que padeciam os horrores desse código. Desde a Bíblia, os códigos beneficiavam só uma parcela da população. Outros eram escravos da vontade alheia… O que vejo hoje é uma desunião que privilegia interesses próprios. A União Europeia demorou muito a ajudar; teve e tem medo da segregação, de que possam surgir outros Brexits. Assim como na América, não estamos unidos, há interesses.
O mundo inteiro está assustado. Agora, além disso, assusta essa palavra espanhola, brote [surto]. É impressionante seu sentido simbólico. O surto está estabelecendo nossos limites. A partir de agora, não temos liberdade, porque somos vítimas do próximo surto. Não se pode gozar sob a tutela do surto.
Sou estudiosa da história, leio os séculos com um prazer imenso e sei qual é a história da humanidade. Uma história absolutamente desencontrada, que alterna tragédias, genocídios… A Europa é a Europa de milagre, sofreu invasões pelo Danúbio, os mongóis chegaram pela Hungria, todos os povos se deslocaram, cada um pôs sua história, sua gênese, seu sangue, sua língua. Muitas de nossas línguas vêm do latim, mas outras estão escritas a sangue, impostas mediante tanta gente assassinada, hecatombes históricas, invasões. Não se pode considerar que a Europa seja um território suave, agradável, deslumbrante. Não. Nasceu das lágrimas, como nós, matamos índios, fomos terríveis com os negros…
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Nélida Piñón - Escritora, integrante da ABL e ganhadora do prêmio Príncipe de Astúrias
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