Se errarmos, temos agora a capacidade de provocar dano incrível em uma escala planetária...
Humanidade conquistou 'poderes divinos', mas pode acabar em Armagedom
Por Daniel Gallas
Da BBC News Brasil em Londres
14 setembro 2024
Um mundo em que as pessoas comem carnes produzidas não em fazendas, mas em laboratórios, sem necessidade de uso intensivo de terras, água e fertilizantes.
Com uma medicina que não precisa esperar sintomas de doenças para começar a diagnosticar pacientes — já que as doenças são detectadas por biomarcadores muito antes de se tornarem fatais.
Ou um mundo em que toda a energia e materiais utilizados nas indústrias são cultivados por seres humanos, e não retirados da Terra.
Esse mundo utópico é descrito pelo autor americano Jamie Metzl em seu livro Superconvergence: How the Genetics, Biotech, and AI Revolutions Will Transform our Lives, Work, and World (“Superconvergência: como as revoluções da genética, da biotecnologia e da IA transformarão nossas vidas, nosso trabalho e o mundo”, em tradução livre).
Metzl é considerado um autor futurista — alguém que monitora o estado atual das tecnologias e busca tendências que vão orientar o progresso da humanidade.
Segundo ele, o futuro descrito acima pode parecer utópico e distante, mas está mais próximo do que imaginamos, já que muitas tecnologias estão perto do alcance da geração atual de cientistas.
Para Metzl, a humanidade está alcançando o feito de Prometeu — figura da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses do Olimpo e deu aos mortais esse poder.
Segundo essa ideia, uma série de revoluções tecnológicas em curso — na genética, na biotecnologia, na inteligência artificial — estão dando à humanidade um poder que antes era considerado apenas dos deuses: de usar engenharia para redesenhar a vida e para interferir no planeta em uma escala inimaginável antes.
No entanto, apesar de seu entusiasmo com as revoluções tecnológicas, Metzl se mantém cético e, às vezes, até mesmo horrorizado com alguns avanços.
Em seu livro, ele diz que se a humanidade não aprender a controlar a tecnologia, sobretudo com cooperação internacional e transparência, “iremos nos desviar para o Armagedom”.
Um exemplo desse perigo, segundo ele, aconteceu há seis anos.
Em 2018, o cientista chinês He Jiankui anunciou ter alterado o DNA dos embriões de duas bebês para torná-las resistentes ao HIV, caso elas entrassem em contato com o vírus.
A edição genética tem o potencial de prevenir que doenças hereditárias sejam transmitidas de pais para filhos.
Mas especialistas temem que modificações em genomas de embriões não apenas causem danos aos indivíduos, mas levem futuras gerações a herdar essas modificações de efeito ainda pouco conhecido.
O caso chocou a comunidade científica internacional. Um estudo posterior apontou que pessoas com a mutação genética que He tentou recriar têm probabilidade significativamente maior de morrer ainda jovens.
He Jiankui foi condenado a três anos de prisão na China.
Jamie Metzl participou do comitê consultivo de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre edição do genoma humano que analisou o caso.
Para ele, esse episódio ilustra o perigo envolvido em novas tecnologias: a falta de transparência internacional e governança pode levar laboratórios a desenvolverem tecnologias perigosas e fora de controle. Isso pode acontecer em qualquer indústria — da engenharia genética a armas de destruição de massa.
Para ele, boa parte das soluções necessárias hoje para a humanidade não são mais tecnológicas, e sim, políticas.
Preocupado com a falta de debate público sobre as tecnologias, ele criou o OneShared.World, um movimento global que propõe ações coletivas para lidar com o que chama de os desafios mais urgentes do mundo.
Nesta entrevista, ele conversou com a BBC News Brasil sobre os diversos riscos e oportunidades envolvendo as revoluções tecnológicas.
BBC News Brasil: Você fala que hoje, para a maioria das pessoas, é a melhor época para se estar vivo e esse é um tema central do seu livro. Por que você está tão otimista com o momento atual e com o que está por vir em seguida?
Jamie Metzl: Se pegarmos qualquer medida de bem-estar humano, estamos melhores do que nossos ancestrais em praticamente qualquer momento da história.
Estamos vivendo de forma mais saudável, por mais tempo, somos mais educados, temos maior acesso a ferramentas e habilidades que nos permitem fazer mais. E essas tendências estão quase que todas se movendo na direção certa.
Estamos desenvolvendo essas capacidades quase divinas de fazer coisas ainda melhores. Nem tudo melhorou, mas a maioria está melhorando.
Mas esse otimismo também requer um pouco de pessimismo – e de ansiedade com o que pode dar errado, caso não acertemos com a transição. Ninguém deve ser um otimista ou um idealista cego. Isso seria perigoso.
Se acertarmos nas nossas decisões, poderemos ter um futuro de grande abundância, sem bilhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, onde todos têm acesso à educação, saúde e nutrição de qualidade — essas ferramentas que podem construir um planeta mais sustentável para humanos e para a vida como um todo.
Por outro lado, se errarmos, temos agora a capacidade de provocar dano incrível em uma escala planetária.
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Jamie Metzl tem experiência no mundo da política. Formado em História e Direito, ele trabalhou em diversos órgãos dos EUA: Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Departamento de Estado e Comitê de Relações Exteriores do Senado — além de ter servido como Oficial de Direitos Humanos da ONU no Camboja. Seu livro anterior — Hackeando Darwin — foi publicado no Brasil.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3vxgr30p04o
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