Mudando o passado
por Eneas Guerriero
Tradições orientais e seus sábios iluminados já se davam conta há milênios do aspecto ilusório da vida e seu passado. Por sua vez, nós, que fazemos parte da sociedade resultante de séculos de cultura ocidental, com sua racionalidade e avanço tecnológico, damos total importância a fatos passados, e por sua vez frequentemente nos remoemos com algumas de suas memórias traumáticas.
Costumo sempre deixar claro, quando escrevo a respeito, que não desconsidero o peso que certos incidentes possam ter influenciado nossas vidas, e muito menos que preocupar-se com traumas seja irrelevante. No entanto, sempre enfatizo que a nossa identificação com o problema, ou melhor, nossa interpretação do problema, é a maior culpada de nosso sofrimento. Muito mais do que o evento em si.
É duro aceitar esse ponto, pois dificilmente aceitamos estar errados. Nós gostamos de ter a razão e achar que nossa ideia é a certa. Porém, será que não podemos parar para pensar que a nossa ideia do passado ou de um trauma passado também não poderá estar sujeita a uma interpretação errada? Os orientais e suas filosofias já tinham razão em dizer que nossas percepções do mundo são tudo Maya, ou ilusão. Feliz o iluminado que pode perceber esse fato e agir livremente, tendo a memória passada como parte daquilo que não é, ou seja, como parte da ilusão.
Memórias passadas, filtradas pelo nosso condicionamento social, cultural, religioso e intelectual, criam o que chamamos de traumas. Frequentemente certos atos da infância podem ter criado reações negativas, e a consequência é nos fechar ao mundo, por proteção e defesa. E esse ato de se fechar faz com que escondamos o problema, que permanece dentro de nós até hoje. Aqueles atos passados continuam presentes em nosso inconsciente e todo momento que surgir uma oportunidade para se lembrar do passado, vamos nos comportar da mesma maneira. Ou seja, pra nos preservar, iremos nos fechar ao mundo. E assim continuamos traumatizados e bloqueados.
E se pudéssemos dar a mensagem ao inconsciente de que o fato ocorrido é coisa do passado e que agora podemos nos sentir seguros e levar nossa vida adiante? E se pudéssemos dar a mensagem de que a nossa lembrança do passado pode estar distorcida? Lógico que pode-se pensar que se está exigindo demais. Afinal, tal atitude é para os iluminados.
Mas a ideia é essa mesma: agir com iluminação! Se ficamos presos a lembranças do passado, que são distorcidas pela nossa memória, por que então não fazer algo para mudar essa lembrança?
Muitas vezes o que ocorre é que criamos ao longo dos anos uma memória conveniente ao nosso estado sofredor. Talvez queiramos ser vítimas e nos sentir assim. É a maneira de nos proteger de novos ataques. E assim ficaremos, sofrendo por anos por ter sido vítimas de um passado traumático. E a memória se fortalece com isso para provar que não estamos mentindo.
Por mais que possamos estar cientes desse fator da ilusão em distorcer nossas ideias, é-nos difícil aceitar o fato de que podemos mudar esse passado. Oras, se um fato traumático passado é apenas uma percepção que ficou gravada na memória, podemos por bem trocar essa memória. Não estaremos mentindo, mas trocando a referência, para termos novos parâmetros na vida a partir de então. Notem que estaremos mudando a ideia do passado, e não suprimindo os fatos que por ventura ocorreram.
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ENÉAS GUERRIERO - Trabalha há mais de 30 anos com desenvolvimento da espiritualidade e do eu.
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