Não podemos falhar no mais amplo de todos os abraços...
Sidarta Ribeiro
Nossas vidas estão de cabeça para baixo, velhos hábitos tidos como imutáveis foram quebrados e a organização social está evidentemente mais maleável. Vislumbra-se a oportunidade de revolucionar para melhor o nosso convívio.
Mas não nos enganemos, pois também paira rente o colapso civilizacional. o cinismo que recusa a enfrentar, cientificamente, a pandemia, fomentando desinformação, egoísmo, preconceito e violência. É preciso reconhecer que a crise gera novas oportunidades de exacerbação do capitalismo predatório, tanto destrutivo, como corruptor da sociedade e da natureza. A ocupação do espaço público feita pelos negacionistas, que buscam tirar vantagem da quarentena para criar uma dinâmica política que justifique seus inúmeros equívocos, é um exemplo da tragédia que nos ameaça.
Se conseguirmos superar a armadilha histórica representada pelo irracionalismo, teremos pela frente um desafio igualmente perigoso, que é evitar o fim da privacidade e da liberdade, como vem ocorrendo no Oriente. Diversos países asiáticos estão se saindo muito melhor na contenção da pandemia do que Europa e EUA, e isso ocorre, não apenas porque sua população adere muito mais fortemente à quarentena e ao uso de máscaras, mas também, porque o monitoramento digital de todos os indivíduos - inclusive com a mensuração de temperatura e rastreamento de contatos - se disseminou num grau ainda inimaginável.
A segurança de dados que os países ocidentais defendem, porém, cada vez, garantem menos,face a todas as falhas que têm permitido o uso ilegítimo de dados por mega-corporações, toma outros países asiáticos a feição de um Estado totalitário que, eletronicamente, vigia e pune os indivíduos de forma absoluta: há câmeras em toda parte.
O risco que corremos é, no afã de escapar da depredação do Estado e do canibalismo das corporações, normalizarmos o Estado de exceção.
A despeito dessas terríveis ameaças, não é hora de cedermos ao pessimismo. Precisamos ter fé no futuro e manter a calma para navegar as grandes mudanças em curso. Estamos velejando de través, quase contra o vento. Se soubermos costurar lá e cá, sem nos afastarmos, excessivamente, do centro, podemos avançar bastante, nesse mar turbulento.
O sistema está mais lábil, mais flexível. Podemos e devemos imprimir sua nova forma. É no limite do fracasso que precisa emergir a nova consciência capaz de honrar nossos ancestrais - que apesar de toda a brutalidade reservada aos diferentes, foram capazes de abraçar seus semelhantes a cada geração. Desde o Paleolítico há registros de pessoas que, ao contrário do que ocorre com os outros animais, conseguiam sobreviver por muitos anos a uma fratura óssea. Isso só foi possível porque desenvolvemos, junto com sofisticadas técnicas ortopédicas, uma igualmente refinada capacidade de cuidar das pessoas que amamos.
Para transpormos a perigosíssima encruzilhada de 2020 precisaremos dos melhores saberes humanos acumulados nas últimas dezenas de milênios. Nossa salvação depende de uma aderência firme ao melhor que a ciência produz, mas a bússola moral que pode nos guiar em paz e harmonia, no caminho do meio entre a segurança e a liberdade.
O reconhecimento de nossa fundamental semelhança humana é o que falta para o grande abraço planetário - solidário e fraterno - que estamos devendo a nós mesmos e à sétima geração depois de nós. Não podemos falhar no mais amplo de todos os abraços - sob pena de que seja o último.
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Sidarta Ribeiro
É biofísico pela UFRJ, doutor em comportamento animal pela Universidade Rockefeller, pós-doutor em neurofisiologia pela Universidade Duke, professor de neurociência, fundador do Instituto do Cérebro e autor de "O oráculo da noite", da Companhia das Letras.
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